terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cony, Elizabeth, Maniqueu e a Semana de Arte Moderna

Assim como vários intelectuais da época e quase nenhum dos dias atuais, Carlos Heitor Cony ousou criticar a Semana de Arte Moderna de 1922, exatamente nesta semana de 2012, 90 anos depois. A diferença de Cony para os intelectuais de 90 anos atrás está exatamente nas nove décadas. Antes, o dito modernismo era “moderno” demais e podia ser criticado, como foi, duramente, por Monteiro Lobato, o maior nome da literatura brasileira até então. Hoje, as críticas de Cony soaram mal. Os argumentos dele, nascido apenas quatro anos depois da Semana, são balizados e baseados em narrativas reais, mas soaram mal. Por que?

O detalhe é que estes 90 anos elevaram a Semana de Arte Moderna a se tornar uma verdade absoluta. O mundo é cheio delas. Quem ousa confrontar uma verdade absoluta, ainda mais uma que influenciou Caetano Veloso, o intocável da MPB? Quem ousa falar que Adolf Hitler era cheio de virtudes na mesma que proporção que Gandhi era de defeitos? Quem ousa trazer à tona o lado humano destes mitos, seja da maldade ou da bondade? São mártires. São verdades absolutas. Quem ousa comentar que a Rainha Elizabeth não é feita de ferro? Tem gente que prefere dizer que ela não é dama. Ela nasceu no mesmo ano de Cony. Estão quase fazendo 90 anos de idade. E não estou nem falando de Margaret Thatcher.  

São assim as verdades absolutas, taxativas. Ou alguém acha que a Seleção Brasileira não mereceu ganhar a Copa de 70 ou que a de 94 mereceu ganhar? Você se arrisca em defender sua opinião? É a lei do 8 ou 80, sem variações, sem percalços. É a lei de Maniqueu. O que é bom é bom, o que é mau é mau, sem variáveis. É a lei do estereótipo. Ninguém aqui tem dúvida de nada. Nós sabemos tudo. A Semana de Arte Moderna é intocável. Afinal de contas, foi nosso diálogo mais próximo com a arte feita na Europa até então. E se veio da Europa é bom. É assim? Quem duvida? Cony. E talvez a Rainha Elizabeth.

Quem aí que não gostava de ouvir Whitney Houston cantar, de assistir a Michael Jackson dançar ou a Ayrton Senna correr que se manifeste. Eles construíram a carreira em cima de dúvidas e depois que viraram verdades absolutas pararam de produzir, já perceberam? Mas, por favor, isto não é nem verdade direito, quanto mais absoluta. Entre todas essas mentiras, o nosso único alento é que Carlos Heitor não chegou aos 90 anos e por isso deve falar muito ainda. Ainda bem!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Depois da meia-noite

Assisti a “Meia-Noite em Paris” ao lado do meu guarda-chuva. Woody Allen acha que gostamos mais do passado que do presente pelo simples fato de não aceitarmos as inconstâncias da vida. Já Gertrude Stein crê que o papel do artista é sugerir espaços para os vácuos e não apenas aceitá-los.

Indaguei meu guarda-chuva sobre gostar mais do passado. Não do passado distante, como Allen indagou, mas do passado vivido. – Eu queria ter sido jogador de futebol. – Mas hoje você é um homem das letras, ou pelo menos tenta ser, fala inglês e assiste a filmes do Godhard. – Mas eu queria. 

O detalhe é que o jogador de futebol ficou no passado. Então, é isso que eu queria ser. Meu guarda-chuva me falou o seguinte: - O passado leva muita vantagem sobre o presente, porque ele é estático e imutável. O passado não gera angústias, no máximo culpas superadas. O passado é seguro, não é instável como o presente. No passado você não pode mais se magoar. Acreditar no “se” é negar o “é”. Ser jogador de futebol, por exemplo, traz muitas angústias também. Pergunte para quem é. Mas para quem esse desejo ficou apenas no sonho, a falsa ideia de que poderia ter vivido uma vida melhor se sobrepõe à realidade, justamente porque não é a realidade.

Fiquei olhando bastante tempo para meu guarda-chuva. Ele continuou: - Esse tipo de raciocínio é a mesma coisa de você querer morar em outra cidade ou achar que a mulher de seu amigo é mais bonita ou a casa do vizinho é melhor. Óbvio que existem mesmo cidades melhores que outras, mulheres mais bonitas que outras e casas mais agradáveis, mas para tudo dependemos de interpretações. Quando você coloca na balança a realidade e uma idealização da realidade, claro que a realidade pura e simples vai perder, porque ela foi testada, a idealização não.

O guarda-chuva continuou sendo enfático e cortando meus ouvidos: - Quando você diz que a mulher do outro é mais interessante, você não viveu com ela, simplesmente a idealizou. Assim sendo, ela leva uma grande vantagem sobre sua própria mulher, que para você é real, com qualidades e defeitos, que você ainda se achou no direito de identificar. A cidade tal é melhor que a sua, porque você não viveu lá. Talvez só visitou como turista, assim como tempos remotos, que você só conheceu através de filmes e livros. A casa do vizinho é cheia de rachaduras, mas você só a enxerga por fora. Então, concluiu o guarda-chuva, saiba viver o presente, para no futuro você ter saudade do passado.

- Ótimo, falei com meu guarda-chuva, você decifrou tudo e resolveu minha vida. Ele respondeu que não consegue resolver nem a dele, quiçá de outrem, e finalizou dizendo que tem uma saudade apertada de uma sombrinha, que paquerou no colégio, e que estava cansado da vida que tem. Comecei a achar a conversa muito chata e ficar com saudades de conversas anteriores que já tive com meu boné, muito mais fluente que meu guarda-chuva. Andei, voltei e me lembrei que o último guarda-chuva que tive eu ainda era garoto e que ele era mudo.